29 JUL 2025
Do portal Migalhas:
A semana política brasileira começou sob a sombra de uma crise internacional.
Enquanto a retórica do deputado Federal licenciado Eduardo Bolsonaro escala o confronto com os Estados Unidos (EUA), ganha corpo a possibilidade concreta de que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, seja alvo da chamada Global Magnitsky Act, lei americana que impõe sanções a estrangeiros acusados de corrupção ou violações graves de direitos humanos.
Tudo começou na Rússia
O nome "Magnitsky" homenageia Sergei Magnitsky, advogado e auditor fiscal que, em 2008, revelou um esquema bilionário de fraude fiscal envolvendo autoridades do governo russo. Após a denúncia, foi preso arbitrariamente, submetido à tortura e morreu em uma cela em novembro de 2009.
Como resposta, o Congresso dos Estados Unidos aprovou, em 2012, durante o governo Obama, a Lei Magnitsky original (Russia and Moldova Jackson-Vanik Repeal and Sergei Magnitsky Rule of Law Accountability Act of 2012), voltada à responsabilização de agentes russos envolvidos na morte de Magnitsky e em outras violações de direitos humanos naquele país.
Em 2016, ainda no governo Obama, a legislação foi significativamente ampliada com a aprovação da Lei Magnitsky Global, estendendo a possibilidade de aplicação de sanções a indivíduos e entidades de qualquer país envolvidos em graves violações de direitos humanos, como execuções extrajudiciais, tortura e repressão política, ou em casos significativos de corrupção.
Já no governo Trump, em 2017, a norma foi implementada e, inicialmente, valeria durante seis anos (decreto executivo 13.818).
Contudo, em abril de 2022, o Congresso norte-americano tornou a lei permanente e ampliou as bases legais, consolidando-a como um dos principais instrumentos globais de sanção unilateral dos EUA.
As sanções previstas incluem proibição de entrada nos EUA, bloqueio de bens sob jurisdição americana e restrição a transações com cidadãos ou empresas norte-americanas.
Quem propõe as sanções?
O processo de designação não depende de decisão judicial. O presidente americano pode agir com base em informações recebidas de:
- Comissões do Congresso dos EUA (bipartidárias);
- Governos estrangeiros;
- ONGs e entidades de direitos humanos com credibilidade reconhecida.
A sociedade civil exerce papel relevante: muitas das sanções recentes foram motivadas por dossiês apresentados por ONGs, como Human Rights Watch ou Freedom House.
Os primeiros sancionados
O primeiro grande teste da lei, ainda circunscrito ao contexto russo, veio em março de 2013, quando a Casa Branca divulgou a lista de 18 cidadãos russos acusados de violações de direitos humanos. A medida, que incluiu autoridades do governo e dois chechenos, foi interpretada como uma resposta direta à morte de Magnitsky.
A reação de Moscou foi imediata: acusou os EUA de ingerência e ameaçou retaliações diplomáticas, como o congelamento de tratativas sobre desarmamento nuclear e sistemas antimísseis na Europa Oriental.
O episódio revelou tanto a força simbólica da legislação quanto seu potencial de causar tensões geopolíticas, e estabeleceu as bases do uso da sanção como instrumento de pressão internacional.
A ampliação
Embora a lei já previsse um escopo amplo, o decreto executivo 13.818, editado por Trump em 2017, ampliou ainda mais os critérios de designação.
A norma permite sanções a qualquer pessoa considerada "envolvida direta ou indiretamente" em abusos sérios de direitos humanos, mesmo sem identificação de vítima específica ou comprovação judicial prévia. O texto não define com precisão o que constitui "abuso sério", abrindo margem para interpretações políticas amplas.
Além disso, permite sanções em cadeia: indivíduos, entidades e redes associadas ao alvo principal podem ter ativos bloqueados em qualquer jurisdição. A decisão final cabe ao Ofac - Departamento do Tesouro, com participação dos Departamentos de Estado e Justiça. A "emergência nacional" que sustenta o decreto tem sido renovada anualmente desde 2017.
Além dos aspectos punitivos, o governo norte-americano destaca os objetivos estratégicos da lei: desarticular redes corruptas e abusivas, criar desincentivos a práticas ilícitas, promover responsabilização onde impera a impunidade, e afirmar a liderança global dos EUA no combate à corrupção e defesa dos direitos humanos.
Dados
A frequência da aplicação da Lei Magnitsky é notável. Desde 2017, foram aplicadas 672 sanções com base na norma: 356 no primeiro governo Trump e 316 durante o governo Biden.
Desde 2017, foram 672 sanções globais por violações a direitos humanos com base na Lei Magnitsky.
As sanções se estendem a mais de 50 países em todos os continentes, e os anúncios ocorrem de forma contínua ao longo do ano. Cada nova sanção é acompanhada por comunicado do Departamento do Tesouro, que detalha os fundamentos da medida. O Departamento de Estado é obrigado, por lei, a relatar anualmente ao Congresso os nomes sancionados e os critérios utilizados.
Moraes no alvo
A tensão com o Brasil se insere nesse contexto.
Eduardo Bolsonaro tem atuado com autoridades norte-americanas para pedir sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, acusando-o de promover perseguição política.
A iniciativa segue estratégia semelhante à usada contra autoridades de países como Venezuela, Nicarágua, China e Arábia Saudita, todos já atingidos pela lei.
Embora a sanção dependa de decisão soberana dos EUA, o risco não é hipotético: a legislação autoriza medidas com base em informações de parlamentares, governos estrangeiros ou ONGs, mesmo sem processo judicial.
A inclusão de um ministro do STF na lista de sancionados representaria um abalo sem precedentes na institucionalidade brasileira.
Embora unilaterais, as sanções têm efeitos práticos amplos: restrições financeiras, diplomáticas, reputacionais e patrimoniais.
A medida poderia ainda alimentar percepções internacionais de instabilidade institucional, afetando setores econômicos estratégicos, como o agronegócio, que já enfrentará novas tarifas dos EUA em agosto.
Casos recentes
Em janeiro de 2025, o Tesouro norte-americano sancionou o australiano David Jonathan Thackray, acusado de atuar em uma rede global de tráfico de cocaína.
Seus bens nos EUA foram bloqueados e ele passou a ser proibido de manter qualquer tipo de relação financeira com entidades ou cidadãos norte-americanos, mesmo sem ter sido julgado criminalmente nos Estados Unidos.
No dia 10 daquele mês, foi anunciada uma ofensiva contra o setor energético russo. As sanções incluíram gigantes estatais como a Gazprom Neft, além de dezenas de executivos de alto escalão de empresas como Lukoil, Surgutneftegaz e Tatneft. A medida, segundo o governo Biden, visou atingir fontes de financiamento da guerra na Ucrânia, ampliando o cerco financeiro contra o Kremlin.
Em março, um marco simbólico da expansão do alcance geopolítico das sanções ocorreu com a inclusão do ministro húngaro Antal Rogán, braço-direito do primeiro-ministro Viktor Orbán, sob a acusação de envolvimento em um esquema de corrupção sistêmica.
Essa foi a primeira vez que um ministro de um país membro da Otan foi alvo direto da Global Magnitsky. Além do bloqueio de bens e da proibição de entrada nos Estados Unidos, o governo norte-americano recomendou que empresas nacionais evitassem qualquer transação com redes associadas a Rogán, apontado pelo Tesouro como operador de desvios em contratos públicos e manipulação institucional de licitações.
Em dezembro de 2024, autoridades americanas já haviam sancionado altos oficiais do ministério de Assuntos Internos da Geórgia, responsabilizando-os por abusos sistemáticos durante repressões a protestos, incluindo agressões contra jornalistas e opositores políticos.
Embora os nomes dos ministros não tenham sido divulgados, os alvos ocupavam postos estratégicos na cúpula da pasta e são considerados operadores diretos da repressão estatal.
Outro caso emblemático diz respeito ao Irã. O ex-ministro do Interior Abdolreza Rahmani Fazli e o então chefe da polícia nacional Hossein Ashtari foram responsabilizados por ordenar a repressão violenta aos protestos populares de 2019 e 2020, que resultaram em centenas de mortes.
Segundo as autoridades americanas, ambos autorizaram o uso excessivo da força contra civis e participaram de esquemas de ocultação dos crimes cometidos pelas forças de segurança.
No sul da Ásia, os EUA também designaram oficiais da RAB - Rapid Action Battalion, unidade de elite vinculada ao Ministério do Interior de Bangladesh, por envolvimento em execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados. Foram incluídos nomes como Tofayel Mustafa Sorwar e Mohammad Jahangir Alam, integrantes da cadeia de comando responsável pelas ações, classificadas pelos EUA como violações sistemáticas de direitos humanos.
Esses episódios ilustram a ampliação do escopo e da intensidade do uso das sanções como ferramenta de política externa norte-americana, com alvos que vão de empresários e militares a membros do alto escalão governamental, e revelam a capacidade do instrumento jurídico de atravessar fronteiras e impactar estruturas de poder, mesmo sem prévia condenação judicial.
Efetividade
Um estudo conduzido por Anton Moiseienko, professor da Australian National University, avaliou os impactos concretos das sanções impostas pelos Estados Unidos, a 20 indivíduos estrangeiros acusados de corrupção.
Entre os alvos estão nomes como Artem Chayka (ligado ao alto escalão russo), Yahya Jammeh (ex-presidente da Gâmbia) e José Francisco López Centeno (ligado ao setor energético da Nicarágua).
A partir da análise de fontes abertas multilíngues e entrevistas com especialistas, o estudo identificou dez tipos de impactos, agrupados em quatro categorias, com destaque para a perda de capital político, restrições à mobilidade e congelamento de ativos. Este último altamente dependente do rastreamento das redes empresariais dos sancionados.
Em dois terços dos casos, os pesquisadores constataram algum efeito relevante. Em um terço, no entanto, não houve evidência de impacto concreto, especialmente quando os alvos não possuíam vínculos com sistemas financeiros globalizados.
Um dos principais achados foi a constatação de que a eficácia das sanções aumenta significativamente quando há coordenação entre Estados e setor privado para desmantelar redes de empresas laranjas e estruturas jurídicas opacas que ocultam patrimônio.
A pesquisa também refuta a ideia de que a ausência de confisco de bens seja indicativo de fracasso: em vários casos, a simples designação pública teve efeitos reputacionais e políticos consideráveis. "O impacto vai além da propriedade congelada, que por vezes é mínima. Mas a marcação simbólica e os efeitos indiretos são reais", afirma Moiseienko.
O relatório, lançado em Londres em junho de 2023 pelo International Lawyers Project, foi bem recebido por organizações da sociedade civil.
O modelo europeu
A adoção de sanções como instrumento de política externa não é uma exclusividade dos Estados Unidos.
Desde dezembro de 2020, a União Europeia passou a contar com seu próprio regime de sanções direcionadas por violações de direitos humanos: o EUGHRSR (EU Global Human Rights Sanctions Regime), frequentemente chamado de "Magnitsky europeu".
A iniciativa se concretizou por meio do regulamento UE 2020/98 e da Pesc - decisão do conselho 2020/99, que estabeleceram base jurídica uniforme para medidas restritivas aplicáveis a indivíduos e entidades não europeus.
Inspirado na legislação norte-americana, o regime europeu tem como objetivo fortalecer a resposta do bloco a abusos internacionais, mas com um recorte mais estrito: ao contrário dos EUA, Canadá e Reino Unido, a UE não incluiu a corrupção como critério autônomo para aplicação de sanções.
A restrição a violações graves de direitos humanos, como genocídio, escravidão, execuções extrajudiciais, tortura e repressão a liberdades fundamentais, foi alvo de críticas de parlamentares, ONGs e especialistas, que apontam a omissão como uma limitação estratégica e moral do instrumento europeu.
Outro diferencial relevante está no modelo decisório adotado. Ao contrário dos Estados Unidos, cuja designação de sancionados pode ser feita diretamente pelo presidente, o sistema europeu requer aprovação unânime dos 27 Estados-membros, o que torna o processo altamente dependente de alinhamentos políticos internos e sujeita o regime a bloqueios diplomáticos.
Essa necessidade de consenso compromete a agilidade e, muitas vezes, a eficácia do regime.
Até o final de 2021, segundo dados oficiais, apenas 15 indivíduos e quatro entidades haviam sido sancionados sob o EUGHRSR, um número considerado modesto frente ao universo de violações reconhecidas internacionalmente e ao volume de designações promovidas por países como EUA e Reino Unido.
As medidas previstas pelo regime europeu incluem:
- Congelamento de ativos localizados em qualquer país do bloco;
- Proibição de entrada e trânsito em território da UE;
- Proibição de que cidadãos ou empresas europeias disponibilizem fundos ou recursos econômicos aos alvos sancionados.
Apesar da formalidade e previsibilidade do sistema europeu, o relatório do Parlamento identifica importantes limitações estruturais. Entre elas, a falta de um canal institucionalizado de participação da sociedade civil e das vítimas de violações nos processos de indicação.
ONGs de direitos humanos argumentam que a ausência de transparência e o caráter intergovernamental do regime prejudicam sua legitimidade democrática e dificultam o monitoramento social.
Ainda assim, o documento reconhece que o EUGHRSR representa um marco na política externa da UE, ao consolidar um modelo jurídico comum, que substitui os regimes ad hoc anteriores - criados para responder a situações específicas em países como Venezuela, Síria ou Coreia do Norte.
Desvirtuamento anunciado
Originalmente concebida como instrumento de responsabilização por atrocidades incontestáveis - como tortura, execuções extrajudiciais e corrupção sistêmica em regimes autoritários -, a lei parece flertar agora com um terreno mais movediço.
A eventual aplicação contra Alexandre de Moraes desloca o eixo da norma de sua vocação humanitária para o campo das disputas políticas internacionais. Seria este um uso legítimo da ferramenta ou uma distorção de seus propósitos originais?
Mais que isso: ao permitir que atores políticos estrangeiros proponham sanções com base em critérios amplos e sem necessidade de decisão judicial, o modelo da Global Magnitsky abre margem para um poder punitivo unilateral, imune a contraditório e livre das amarras que limitam a própria jurisdição americana.
Trata-se de uma moeda de força simbólica que, quando usada contra instituições de países democráticos, pode operar como afronta à própria ideia de autonomia constitucional.
Neste contexto, comparar Alexandre de Moraes a oficiais acusados de reprimir protestos com violência letal, como os da polícia iraniana ou bangladeshiana, é mais do que uma extrapolação: é um esvaziamento semântico do que realmente significa violar os direitos humanos em sua acepção mais grave. A banalização desse instrumento pode não apenas enfraquecê-lo, mas também desviar o foco de tragédias reais que clamam por justiça internacional.
A fronteira entre a legítima defesa dos direitos fundamentais e a ingerência arbitrária é tênue. Cruzá-la sem critério pode corroer a credibilidade do regime sancionatório e, mais perigosamente, alimentar narrativas de confronto geopolítico em detrimento do diálogo democrático.
Autor(a): BZN